
Pouquíssimas coisas no mundo me dão mais prazer do que estar com minha filha, mesmo que, quase sempre, acabemos brigando. E eu sei que ela vai odiar que eu esteja dizendo isso aqui, mas vou dizer: a culpa é mais dela do que minha; na maioria das vezes é dela mesmo. Hoje foi um dia bom, apesar de eu ter acordado tarde demais pra tudo que eu queria fazer, e ainda por cima com uma dor de cabeça daquelas. Que raio de uísque eu bebi ontem? Enfim, tenho que começar o dia, mesmo que ele já esteja pela metade. Primeiro passo, tomar um banho demorado, do tipo que as campanhas de economia de água condenam. Uma vezinha só não vai me fazer responsável pelo fim da água no planeta. Demoro menos do que desejava, visto-me às pressas porque escuto a voz de minha Su em seu quarto, e penso que ela está saindo. E eu mal a vejo quando estou aqui! Abrindo a porta do banheiro me deparo com meu Serginho de bruços na rede diante do notebook sobre a minha cama. Outro que eu vejo pouco, minha sorte é que, ele estando em casa, está sempre no meu quarto. Que forma estranha de acessar o pc! Inclino a cabeça para ver a tela bor baixo da rede(sei que ele odeia isso), e beijo rapidamente suas costas. Tão lindo esse meu filho, que nem precisava ser tão genial...rsrs...corro até o outro quarto onde encontro minha Su sentada na cama com as pernas entrelaçadas, e enquanto beijo sua cabeça e pergunto se ela vai sair ouço-a dizer que acabou de chegar e começa um relato de tudo que já fez aquela manhã. Por que será que me sinto culpada por estar acordando naquele momento? Ah, deixa pra lá, tomar café é o próximo passo e me sento à mesa da sala, diante da tv ligada. Que tristeza, estão falando a respeito da morte da universitária de 22 anos por uma bala disparada por um policial. Ai meu Deus, que mundinho violento, esse em que vivemos. Enquanto mastigo um pedaço de mamão estico os olhos para a outra sala onde vejo meu filho da mesma idade da adolescente morta, sentado diante da tela do pc, e não consigo me impedir de pensar em como deve estar se sentindo a mãe que perdeu sua jovem filha. Um nó me fecha a garganta, tomo um gole de água antes de trazer pra perto a chícara de café com leite fumegando. A essa altura a minha Su já está sentada diante de mim espalhando seus extratos a pagar e se queixando porque o dinheiro que tem não vai dar pra pagar tudo. Lembro do prejuízo enorme que ela teve ao bater seu carrinho em dois carrões, e sendo obrigada a pagar a despesa dos três carros. Ai meu Deus, tenho que fazer alguma coisa, penso rapidamente enquanto permaneço calada. Ela me pergunta se eu vou sair, digo que sim, vou tentar dar um jeito nesse cabelo que está horroroso. A lembrança do Naldo me fuzilando com os olhos por eu chegar lá sem ter marcado hora quase me faz desistir, mas a lembrança do meu cabelo me encoraja a ir e enfrentar a fera, afinal, por pior que seja, é apenas o meu cabeleireiro favorito. Olho distraída para os papéis espalhados entre o café e o queijo, o que me pareceu intencional, e escuto que um daqueles vai ficar sem ser pago. Me arrisco a olhar o valor arrastando para perto a tal fatura que ela me diz que não vai dar pra pagar. Tudo bem, filha, posso pagar isso aqui pra você, tá bom? Tá bom, me responde ela, e é só. E me fala de como tem sentido falta do seu carro, sem previsão para ser entregue pela oficina. Tem chovido diariamente, e não dá pra pintar o carro assim, ela me explica. Conta que chorou muito ontem à noite, hoje cedo também, por ter que sair e ficar dependendo da boa vontade de outras pessoas, e por ver o irmão sair de carona com o amigo deixando o carro na garagem. Pergunto-lhe porque não pediu o carroa a ele. Não responde. Ah, filhos! Ah, irmãos! Sinto-me mais culpada ainda, que droga, eu deveria estar acordada mais cedo para levá-la aonde ela quisesse ir. Droga de mãe, que eu sou. Digo-lhe que entendo, e que agora já está mais perto de recebê-lo, falo isso lembrando do meu notebook na assistência técnica para trocarem uma placa, faz tanto tempo que pra mim parecem séculos! Ai ai ai, desisto de continuar comendo porque ela quer ir comigo e precisa voltar cedo para um compromisso. Então tá, vamos logo, deixa só pegar a bolsa no quarto. "Mãe, vem aqui ver uma coisa", me chama o meu Bruno da sala e me mostra algo na tela do computador, e eu aproveito para lhe beijar a nuca e o pescoço logo acima do peito; ele me abraça e me beija com força no rosto, mais de uma vez, e eu sinto uma felicidade tão grande que quase esqueço que uma das minhas crias não dormiu em casa, como aliás vem fazendo nos últimos dias. Ah, meu filho, meu filho...como esquecer,né? Tudo bem, tudo bem. É mais um sábado com meus filhos, e ele termina tão rápido! Amanhã já é domingo, e aí eu já estarei partindo, mais uma vez, pra longe deles, recomeçando toda a espera por mais um final de semana em casa. Afinal, estar em casa, estar com eles é, sem dúvida, a melhor de todas as coisas que eu poderia querer na vida.